Powered By Blogger

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Conflitos e resolução

Isto é de conteúdo confessional e é de hora. Faz-se necessário porque eu quero que seja assim, não porque exista demanda. É parte da absorção e aceitação do medo, o qual vive a ser lançado para fora a cada dia, e um escrito ajuda muito. Sou desses que também tem medo.

Acontece que a gente gosta de se pintar de dourado até que se pareça valioso... Gostamos da aparência bonita e fazemos qualquer coisa por ela. Pagamos caro, rimos falso, pontuamos palavras, nos tornamos eloquentes, decoramos textos – tudo em prol de algo bem mais nocivo do que a autoestima, algo que eu chamarei aqui de “sanguessuga”. Quando um desejo nos surge, a sanguessuga o transforma numa obsessão e a alimenta. Ao chegar a dor da não-realização, não há nada que preencha a falta: a sanguessuga destrói todas as alternativas saudáveis.

Sanguessuga danada! Tira o bom, deixa o ruim. Ela se nutre de paz, de aceitação, de compreensão, de paciência, de sensatez e de tudo mais que nos ajude a prosseguir e a crescer. Ela deixa somente o rancor, o ciúme, a insatisfação, a amargura, a acidez, a inveja. Ela quer que sejamos superiores a todos. Ela detesta a humildade; não permite que reconheçamos nossa inferioridade. E quando conseguimos vencê-la por um instante e nos vemos pequenos, ela esperneia violentamente em nosso estômago, causando uma ânsia de vômito emocional tão insuportável que voltamos ao estado de deuses de si mesmos. Somos nossos ídolos e a sanguessuga nos ajuda.

Nesse quadro, chega então a hora em que eu queria ser quem não sou e nunca serei. É quando eu quero lançar o melhor disco de blues já feito e não ver ninguém acima de mim na história da cultura pop, seja do mundo, seja do meu bairro. É quando quero ser autor do romance que revolucionou a maneira de escrever romances. É quando gostaria que meu rosto ou meu corpo marcassem a indústria da beleza para sempre. É quando quero ser o mais aclamado diretor de Hollywood. É quando eu deveria ter fundado a maior empresa de computadores. É quando eu deveria ser o mais admirado, seja a nível mundial, nacional, estadual, acadêmico, virtual ou mesmo residencial. É quando eu deveria ser o melhor em qualquer coisa e a sanguessuga não me deixa entender que eu não sou.

E assim, com uma sanguessuga dentro de mim faminta pelo pouco que tenho de bom, encontro um antídoto: amor.

É quando Laís me encontra.
         É quando eu converso com Laís.
         É quando eu toco em Laís.
         É quando eu sinto o cheiro de Laís a uma considerável distância.
         É quando compartilhamos lágrimas.
         É quando doamos lágrimas.
         É quando juntamos lágrimas e sorrisos.
         É quando os sorrisos que a sanguessuga tentou sorver voltam com toda a força.

É quando o amor é um sacrifício e não um sentimento. Esse amor sacrificial, que aceita toda a vaidade deixada pela sanguessuga, aniquila a sanguessuga. Pisa. Esmaga. E começa a existir sentido em ser pequeno, pois, mesmo pequeno, mesmo não sendo aquilo que a sanguessuga nos diz que deveríamos ser, sou alguém para alguém. Amando, se sacrificando (e matando junto a sanguessuga), vou me tornando alguém para alguém. Chorando, tentando extrair de mim o bom.

Se não for pra Laís, eu nem quero mais ser eloquente. Eu nem quero mais escrever bonito. Eu nem quero saber cantar. Nem quero ser o melhor guitarrista de blues. Não quero estar em evidência em outro lugar que não seja o coração dela. Nem me preocupo com dardos... Ser alvo de dardos é coisa pouca perto de amar.


O amor aceita o que não é e melhora o que já é, mas tem que vir das entranhas. Amores entranháveis doem também. Contudo, o amor é pra ser amado assim. E eu amo a Laís.

Tempo de Pipa by Cícero on Grooveshark

sábado, 17 de agosto de 2013

De verdades irresistíveis

[som agitado - pausa - respiração - som constante]
Assim, tua risada segue o ritmo de poesia.
Assim, se eu pudesse,
se eu soubesse,
faria poesia sobre tu.

Minha poesia é não saber
que te sei.
Que eu sempre te soube,
mesmo sem te fazer.

Também de poesia não sei! Mas faço,
porque te sei.

Unimos nossas poesias/risadas/saberes.
Agora nos sabemos;
me sei desde o dia em que te soube.
E me ri! E te soube quando tu se riu.

Te sei/te rio/não te faço.
Te amo.


[oralmente lido em 16/08/13, escrito para ser lido em voz alta.]

à Laís de todos os dias da vida


Mistérios by Milton Nascimento on Grooveshark

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Maio


De repente, muito se tem a dizer, mas não se sabe como! Confesso: é novidade para mim. Sempre cri quando Flaubert escreveu que podemos ser perfeitamente exatos em tudo que quisermos expressar por meio das palavras; porém, fico escavando as construções do étimo, em busca de me introduzir. Então, as amigas palavras me correspondem, mostrando-me a maneira mais simples de se iniciar uma conversa: contando as novidades.

Entendam-me, caros: não pretendo ser monótono como as tradicionais conversações. Acontece que eu tenho coisas novas a contar, que há tempos aguardavam para serem expostas. Aqui não há engano; embora de muito tempo, são jovenzinhas que se protegiam num casulo (para ninguém tirar na hora errada).

Na cidade vizinha tem coisa linda. Tem endereço novo para destinatário, tem sorvete e tem telefonema de longa duração. Na rua dá para ver criança que sorri e criança que não sorri, mas que está lá, e, só de estar, nos faz sorrir. Tem praça com movimento e tem casa que é esconderijo. Tem horas que passam e anos que passam... Tem profundidade.

E quando eu não esperava, os anos me trazem essas novidades! O ano me traz novidade! A vida me traz novidade! Alguém bastante Alto me traz novidade! Todas as novidades que chegam foram muito pacientes. Vinham se programando para aparecer, planejando sem ninguém saber desde os dias em que a gente nem sabe contar as novidades – e pergunta mesmo assim.

Há quem diga que uns passarinhos não foram para o sul este ano, até ver o que anda acontecendo de novo. “Mas os cartolas dirão que não é tempo de lirismo.”¹ Se é assim, minhas sinceras desculpas por desmenti-los! Por aqui, não sei falar de outro jeito – ainda mais agora, que tenho todos os motivos do mundo para tanto. Poderão, quem sabe, ver-me sendo coeso e métrico nos jornais, contudo, neste espaço, livremente falarei
paragrafando como eu quiser.

O amor se fortifica numa cidade tão fértil quanto segura.²


¹ Mario Quintana, A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Globo, 2006, p. 178
² O Livro dos Juízes. Capítulo 18, versículos 7, 10. In: Bíblia Sagrada: nova versão internacional. São Paulo, Vida.




Feliz Pra Cachorro by 5 A Seco on Grooveshark

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Confissão


Queria eu ter um bom coração!

Classifico um “bom coração”, no caso específico que tratarei, como um coração altruísta, despretensioso. Como alguém que recusa a si mesmo antes de tomar decisões que envolvam mais gente. Como alguém que se preocupa em como o outro vai se sentir ao dar aquela opinião, ao dizer aquela verdade. Preocupar-me com a situação de quem vai me ouvir ou de quem vai ter que carregar as conseqüências daquilo que eu escolher.

E isso tudo sem esconder a verdade. Isso tudo sem deixar de ser franco, sem deixar de expor O QUE É, e não O QUE EU QUERO QUE SEJA. Esta é a virga que precisa cair. Minha natureza limitada e que não se harmoniza com o tempo não consegue ver o que haverá de ser. E é claro que não cabe a ela saber. Claro que não me convém conhecer o futuro, pois quem sou eu? Sou tudo o que eu não gostaria de ser.

O medo é olhar para si e assistir a própria amargura, a própria limitação. Descobrir-se egoísta traz uma dor indecifrável para quem luta contra tal defeito. Ser o que não se quer ser é bom desde quando? Aceitar-se falho talvez seja um dos maiores desafios para um indivíduo, por isso que uns preferem negar sua incapacidade de ser bom, fechar os olhos para o egoísmo e alimentar o ego com o que quer que seja.

Então encontro Deus. É lindo como Deus se afasta dos que andam cheios do orgulho e da certeza de não falhar (e de quando falhar, não tem problema) e se aproxima do que está fraco, falido consigo mesmo, duvidoso quanto ao seu talento, indisposto para seguir em frente, confuso sobre sua utilidade no passar dos dias. A confiança em si mesmo se esvai, a debilidade se manifesta, e é quando o Único que é perfeito demonstra um amor tão grande, colando os pedaços, juntando os tijolos, construindo como Ele quer. Afinal, de barro sou, feito pelas Suas mãos. Me encontro pequeno, sem o direito de renegar a visão alheia sobre quem sou, ao passo que devo minha idoneidade somente ao Justo Juiz.

Assisto o meu criador invadir cada espaço do que sou e tornar tudo novo. Sua presença é tão cheia de perfeição que revela todas as minhas imperfeições. E, cada vez mais, as aniquila. Quão doloroso é esse processo – quanta solidão, choro, agonia, indisposição. Momentos privados, escondidos, guardados num cofre. Só Um conhece, e habita, e restaura. Contudo, aprendemos mais no sofrer do que na festa. O que serei um dia, o que precisarei, virá das lembranças de quando o Oleiro moldava o barro, que quebrava, mas era rejuntado. E não me encherei do orgulho que combato, sabendo que por causa dEle tornei-me o que sou. E para Ele.

Vivo para ser, amanhã, melhor do que hoje, até que a raiz doente fincada em mim seja destruída de uma vez por todas. Queria eu suportar sozinho as dores causadas pela minha pecaminosa natureza, mas não consigo – e nem preciso. Antes de sofrer acusações (as que eu mesmo me dou nem se comparam às que vêm de fora), lembro que foram pregadas numa cruz para nunca mais fazerem efeito. Lembrar disso me faz perceber: estou morto para mim. Não há do que me queixar! Agora, hei de deixar que o Sumo Fazedor do Bem me conserte quando eu não conseguir.


O Tapeceiro by João Alexandre on Grooveshark

terça-feira, 16 de abril de 2013

Fadiga



Todo dia a gente morre um pouquinho.

De envelhecer, de chorar, de rir, de cansar, de amar.
A gente vive para encontrar a vida que distancia a morte.
Ah, pensarei no viver, e não no morrer, mas sabendo que o morrer um pouquinho, todo dia, faz parte do viver.
Ganhar para si o viver é entender o porquê do morrer. E do que vem depois dele.
De repente, vem um beijo ou um novo viver. A gente não tem como saber.
A gente só tem que saber lidar com essas mortinhas de todo dia.
Pois a gente vive sabendo que tem o morrer, mas vive.
Viver é incerto e delicioso.
Viver de chorar, de rir, de cansar. Viver de amar.
Tomara que todo dia a gente encontre uma vidinha no meio da morte, seja o que tiver que morrer para que haja vida.
E que não percamos nossa vida pensando na morte, pensando no final.
O novo só é “novo” porque o velho deixou de existir.
E o novo bate à porta todo dia. 
Há de se abandonar o velho e deixá-lo morrer, a fim de que o novo adentre.
E, assim, todo dia a gente vive um pouquinho mais do que morre.
Aprendamos a semear vida em meio à morte.
A morte não acaba com a vida; ela só existe por causa da vida!
Que haja vida em cada beijo, toque, palavra escrita ou falada.
Vida também é coisa de todo dia

(não esquecer que tudo passa)


Tempo De Amor by Seu Jorge and Almaz on Grooveshark

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Sobre como conservar (a si e ao que importa)


O problema é que todo mundo corre demais.

Meu habitat natural é a quietude. Fico aflito diante de tanta pressa, rapidez, ansiedade e disse-me-disse. O mundo todo me vem com uma mala lotada de coisas a fazer num prazo impossível pra deixar pronto. Não to pronto nem pra começar!

Seria tudo tão mais simples se feito aos poucos. Assistindo as coisas pequenininhas achando seu encaixe no espaço-tempo, posso levar a vida de um jeito mais calmo. E como é difícil não ver tudo de um jeito exageradamente amplo; todo dia me fuzilam virtualmente com beleza escassa de verdade, palavra vazia de verdade, imagem distante da verdade. Tudo por causa do desejo de ter tudo logo – sem saber que toda boa árvore dá seu fruto no tempo certo.

Pois faço um esforço doloroso pra que meus ouvidos e olhos sejam limitados aos dos demais. Sim, não me importo de estar atrasado, contanto que eu me agrade do meu tempo. Não que eu controle a minha vida – é exatamente por isso que não pretendo assisti-la passando, sendo efêmera, sendo propagandeada no frasear insensato e programado do cotidiano. Este cotidiano eu quero bem moderado, bem devagar, bem... alicerçado. Tipo medir no vento o passo de agora; tipo ter controle sobre o acaso.

Firmeza. Entendo: a quietude traz firmeza, que traz certeza, que sorri sem culpa! Não se trata da ilustração de sentimentos ou coisa do tipo, porém, decerto, o colorir do dia nublado (embora o nublado seja lindo e, onde vivo, bem vindo) dos tantos afazeres. É a não-confirmação da felicidade expressa na própria felicidade. Coisa que pouca gente tem que saber.

O problema é não sorrir com o barulho da chuva.


Wait by The Beats on Grooveshark

quinta-feira, 28 de março de 2013

De antídotos

Estou encarcerado em minha infância.

Não se trata de ser infantil no sentido mais “briguinha de casal” da palavra; arrumo minha cama, posso lavar minhas roupas, tomo minhas próprias decisões (não sem dificuldade) e assumo culpas e responsabilidades. Em suma, estou me tornando adulto aos poucos e aceito esta imutável condição. Minha prisão à infância se dá num contexto bem diferente.

Eu amo fiteiros. Não é possível expressar minha satisfação em ir a uma barraquinha com o bolso cheio de moedinhas, nele o valor necessário contadinho, e comprar algo que vou consumir em alguns minutos e que custa quase nada. Sempre amei torrar dinheiro assim! Torrava as moedas de cinqüenta centavos de uma só vez, quantia que passei a semana tentando conseguir. Chegava à vitrine, ou à prateleira, ou ao balcão, sorrindo de ponta a ponta e com dúvidas empolgantes rodeando a mente: pirulitos, chicletes, pipoca, paçoca ou chocolate? Levava de tudo um pouco.

Eu amo sentar no chão sujo da rua. Nunca tive o menor pudor em debruçar-me, inerte, na presença de formigas e outras criaturinhas aparentemente insignificantes. As ameaças que minha mãe gritava de que eu pegaria doenças nunca fizeram efeito... Jogava-me no chão sem pensar. Não nego que as frieiras, bichos-de-pé e picadas dos tais seres pequenos eram incômodos e corriqueiros, embora afirme com toda convicção que sempre fui um rapaz muito higiênico. Meus colegas se assustavam; eu não tomava banho de imediato após chegar da rua. Ao contrário deles, beijava a minha mãe, que nada dizia, porque eu escondia a sujeira com imensa destreza. Lanchava e via um pouco de televisão, até encarar o atormentável banho.

Eu amo o pôr-do-sol. Claro que isso é um tremendo clichê – culpa dos que me roubam o adeus da grande estrela. Lembro-me de ter chorado ao contemplar o fim de um dia, enquanto subia e descia no balanço de um parquinho. Ninguém, até então, conhecia esta história (nem a emoção que nela há, pois me roubaram a beleza do sol): senti como se tivesse muito a fazer num prazo curto. Apresentei fraqueza diante do tempo. Ainda queria brincar no escorrego! Mas o dia chegava ao fim e eu teria de esperar até a próxima tarde para voltar lá. Como nunca fui de correr atrás de algo que eu não posso, chorei. Apenas deixei algumas lágrimas descerem, pondo-me em meu lugar.

Peço perdão à correria da vida por não ter me desvencilhado de tudo isso. Por causa dessas coisas, supermercados são entediantes, não consigo morar em apartamentos e a rua tem que ter um fim pro horizonte – não aceito pontes, edifícios ou qualquer outra coisa que encubra a minha visão do sol. E o pior: compro briga caso o que eu queira não se enquadre nestas qualidades, e em tantas outras que preferi omitir, a fim de permitir a empatia de alguma alma boa que veja este escrito. A omissão é o meu esconderijo ao me ver em crise.

Que raiva de ter crescido! Por vezes, me escondo de mim e dos outros, compro bala de iogurte, sento no chão e assisto o sol se pôr. Assim, volto a mim.

Have a Talk With God by Stevie Wonder on Grooveshark

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Sobre sair de fininho


se sorriso falasse
se arrependimento matasse
se sobrancelha cantasse

eu sorriria

eu me arrependeria
eu sobrancelharia

mas, como não posso

sorrir
arrepender
sobrancelhar

eu

vou embora
sem findar os versinhos 

Blue Rondo a la Turk by Dave Brubeck Quartet on Grooveshark

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Jornada de uma sexta


Perdi-me antes de chegar. Quando me vi com a passagem em mãos, desandei a planejar os cafés a conhecer e frases que seriam ditas nas conversas com estranhos. Meu passaporte físico era um mero papel riscado se comparado ao passaporte imaginário, era um pedaço de celulose diante do que se passava no lado direito do meu cérebro, enquanto eu sentia as correntes elétricas das sinapses.

No ônibus, puxei os fones e o bloquinho, meus companheiros de viagem, juntamente com a paisagem de formações rochosas e plantações a perder de vista. Eu estava na estrada, já distante de meu calmo e seguro vilarejo, eufórico por rumar para meu futuro, para minhas oportunidades, para assistir os sonhos passeando nas congestionadas avenidas. Que custaria a correria para ter o que eu queria? Não hesitei em tornar palpáveis minhas esperanças – eu as via me soprando beijo pelo ar! De repente, numa situação crítica de conjecturas flutuando com asinhas, os fones soaram Fantasia, do Chico. Não resisti: pus o travesseiro na boca (pois ecoar a voz no corredor de um ônibus às duas da manhã não seria agradável aos passageiros) e cantei. “Canta, canta uma esperança...”, e eu cantava.

Mal consegui dormir, tamanha a ansiedade para desembarcar. O semi-leito também atrapalhava bastante, não apenas pela posição desfavorecida à minha lombar, mas também por ranger a cada vez que o ônibus atravessava as deformações do asfalto da pista. Todo o conforto da viagem se resumia no que eu ouvia e criava, posto que nem dei atenção às instalações do veículo. Dava-me por muito satisfeito com o silêncio e a ordem que a viagem transcorria. Enquanto acordado, sabia que não controlaria a euforia quando chegasse à cidade; mesmo contraditória, mesmo difícil, mesmo densa, era o ponto findo do meu imaginário. Por fim, dormi.

27 longas horas depois, o ônibus parou na rodoviária. Acordei de um salto! Apressei-me a descer, agarrar a bagagem e parti pelo horizonte de expectativas.

Caminhei pela cidade o dia inteiro, até chegar à pousada que me indicaram e descansar. No outro dia, esperei a ligação da empresa que me prometeu emprego, motivo que me fez sair da calmaria onde nasci e enveredar por ruas recheadas de gente. Por um mês, não recebei ligação alguma. Consegui o endereço, mas, ao lá chegar, encontrei um prédio vazio, presumindo que a firma havia falido. Quis ficar mais um mês hospedado, na expectativa de trabalhar em outro lugar e morar naquela cidade; nada feito. Quando meus recursos enfim acabaram, voltei para casa, para a monotonia, para a languidez de onde pensei ter me livrado eternamente. Aceitei a derrota, baixei a guarda, rendi-me ao que parecia estar reservado para mim - "sonho não se dá".

Foi quando o sol já se havia posto e a lua se apresentava cheia numa sexta-feira. Parei de escrever e divaguei por uns instantes... Nada do que relatei aconteceu. A cidade era, na verdade, uma moça.


Automatic Stop by The Strokes on Grooveshark

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Conto adolescente


Não chegou a ser exatamente um choque para Paulo ver, ao vivo e a cores, aquela cena. Ele já esperava que Lisbela o trairia com Arnaldo, mais cedo ou mais tarde. Na verdade, Paulo tinha quase certeza que isso estava acontecendo, pois Lisbela não era dotada da menor capacidade para enganar a observância dele, que ainda não tinha noção do tempo ou da intensidade do triste fato. Mas não esperava que acontecesse minutos antes de visitá-la.

Esperou Arnaldo entrar no Celta preto com aerofólio e rodas esportivas TSW pra tocar a campainha. Estava tão inconformado quanto tranquilo, ensaiando como jogaria na cara da moça a sua desqualificação para ser conhecida como respeitável. Paulo estava com ela, até então, por conforto. Era interessante sair com uma menina bonita, fazer algum carinho, deixá-la tímida com elogios bem elaborados que ela jamais ouvira, pagar lanche e enviar mensagens dizendo que tinha gostado de vê-la. Ele não gostava dela exatamente, e sim do que ela provocava nele; uma sensação de dono de si mesmo, que controlava os sentimentos e segurava alguém com ele porque sabia encantá-la.

O ego tão grande o fez ficar, digamos, insatisfeito com o que Lisbela andava fazendo com Arnaldo, por alguns motivos: isso fez com que Paulo se sentisse insuficiente; Lisbela revelava-se uma ignóbil mentirosa; e Arnaldo, além de um nariz proeminente, não sabia a diferença entre “mas” e “mais”, o que gerava piadas por parte de Paulo (Arnaldo era ex-alguma coisa de Lisbela e isso gerava competitividade para ele).

Lisbela estava ficando com o ex! Finalmente atendeu a porta:
- Oi, meu lindo! Que surpresa linda! (Conhecia poucos adjetivos e repetia muito “lindo” e “doce”)
Paulo entrou sem ser convidado, com cara de poucos amigos:
- Com quem você tá?
- Carlinhos, tá no quarto jogando videogame. Você tá chateado?
- Vi você e o Arnaldo se beijando há cinco minutos.

Gelada dos pés a cabeça: assim ficou Lisbela. Não era de mentir, era de omitir. Como não podia omitir e não conseguiu pensar rapidamente no que dizer, expressou sua agonia paralisando-se, e Paulo ficou realmente irritado após ter pronunciado o motivo da indignação:
- Lisbela, eu não esperava algo assim da sua parte. Você demonstrava tanto carinho e cuidado por mim que eu não esperava ser corneado de maneira tão... tão... Eu não esperava ser corneado! Claro que eu estava certo em ter ciúmes dele. Vi todas as indiretas no Facebook e você as respondia. Depois, dizia pra eu não dar atenção, que já era passado.
- E era passado!
- Claro que não era! Você não negava com veemência minhas quase acusações. Praticamente assumiu o adultério na minha frente, achando que eu fosse acreditar só porque você tem um cheiro que eu gosto.
- Paulo, para com isso! Você tá me fazendo mal...
- Eu? Eu? Você agiu da forma mais improvável pra mim. Você botou tudo a perder com essa safadeza. Quanto tempo faz? Quantas vezes foram? Por quê?
- Me perdoa... Por favor, Paulinho, me perdoa... (com gemidos e voz de choro)
- Responda as perguntas.
- (Suspiro) Olha, faz uma semana que ficamos pela primeira vez. Foi na festa da Clarinha. Ele insistiu muito, me atacou à força, não pude evitar... De lá pra cá, só aconteceu novamente hoje.
- Hm. Interessante que hoje ele não precisou fazer força nenhuma. Foi bem fácil, aliás. O que me faz duvidar que você esteja falando a verdade.
- Claro que estou.
- Não importa. Não preciso acreditar. Não preciso de você. Eu tive muitas oportunidades de te trair, recusei todas elas porque eu te respeitava. Sei que só temos três meses, nem é exatamente um namoro, mas, mesmo assim, te respeitei.
- Eu sei que errei, sei da imbecil que eu fui, nem entendo porque fiz isso. Por favor, Paulinho, me perdoa, me perdoa!
- Você não estava feliz? Por que precisou disso? Por que ele? (Paulo percebeu que começou a dar importância demais e era hora de encerrar tudo)
- Eu não sei, eu não sei! Fui uma burra, uma imbecil... Eu quero você!
- Não entendo o porquê. Sou emocionalmente estável e dou valor às coisas simples. Por que, Lisbela? Ele é burro e usa camisa listrada com bermuda xadrez!
- Paulinho, eu não fiz por querer! Você é doce, lindo... tão lindo, tão doce...

Neste instante, a mãe de Lisbela chegou em casa. Paulo disse que estava de saída e se despediu das duas. Gostaria de rir de tudo isso como tantos riram com sua narrativa tempos depois, porém, certamente, estava bem mais triste do que pensou que ficaria.

As semanas seguintes foram dolorosas. Os dois sentiam falta do celular apitando, com alguma bobagem chegando via mensagem de texto. Lisbela, que antes não ligava para as bandas favoritas de Paulo, assumiu a fossa e não parava de ouvi-las. Paulo chegou à conclusão de que jamais teria dado certo, principalmente porque eles eram opostos em coisas que não poderiam ser. Com o tempo, a conformidade alcançou os corações.

Quatro meses depois, Lisbela saía cambaleante de um Celta preto com rodas esportivas TSW e aerofólio, segurando no poste e tocando a campainha. Paulo não respirava tão aliviado por ter terminado algo desde que resgatou a princesa em Super Mario Bros., aos 10 anos.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Oportunidade e liberdade e flor


Sonho, e, escrevo. Escrevo porque sonho e porque não criei dívida que contenha cláusula impeditiva de fazê-lo. E faço sonho com a força de um beija-flor, uma força muito forte nas asas. Se as asas param, a morte não demora mais que dez segundos pra tirar a força, os sonhos e todo o resto. Sonho tem que ter asa.

Invento o que já existe porque nas asas aqui só tem emoção. A inteligência é fraca pra desrepetir o que a emoção quer que eu repita, por mais que tente. Então a razão flutua feito pena solta, sem rumo, vem e vai, chega e sai. Mas a emoção é caseira, preguiçosa, tão inválida como a razão em dias de vento forte. Ora, se o vento é forte, bato as emoções e pego carona até o girassol mais alto! O vento leva tudo, ainda mais se forte for, mas o sonho não leva, porque a asa tem força pra vibrar.

A emoção é o clichê indissolúvel, indesejável e inseparável. Ao encontrar a razão, passa a analisar certidão de nascimento, carteira de biblioteca, canhoto de cinema e tanto mais que houver nas gavetas, a fim de encontrar a melhor forma de alcançar o sonho. E, enquanto anfitriã e visitante freqüente discutem, o sonho vai batendo as emoções/asas no vento que veio do sul. Em meio às divergências, as duas correm atrás do vento pra ver o que resgatam do sonho, que só quer saber de existir, embora não saiba como. Esta incumbência pertence às suas tolas pariceiras.

O sonho só existe em par com a liberdade, assim como asas não fazem voar sem um pouco de vento. E precisa pouco! Dez segundos sem bater as asas resulta em morte, dez minutos sonhando se chega longe. Pegando carona ou não. A pé, de carro ou voando, escrevo. Porque não há cláusula impeditiva.